Você é uma pessoa coerente? A palavra coerência significa estar conectado ou unido por uma relação de forma ou ordem. Também pode significar coesão, aderência, adequação, adaptação, e consistência de pensamento ou de discurso.
Para entendermos com mais profundidade isto, é preciso ressaltar que nosso senso de julgamento sobre a vida, sobre os fatos e as circunstâncias, sempre está baseado em nossa cosmovisão, ou seja, no que projetamos e interpretamos a partir do nosso interior. Portanto, submeter nossas “coerências pessoais” ao crivo das Escrituras, poderá revelar um nível de incoerência em nossa práxis cristã, que não conseguimos enxergar por nós mesmos.
A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz. Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! – Mt 6.22-23
Neste versículo encontramos um primeiro paradoxo que gostaria de analisar: os olhos precisam de luz para captar as imagens, mas dentro de nós pode haver trevas que nos impedem de ver o que a luz está manifestando. É por isso que “o homem que tenta olhar para Deus e o mundo ao mesmo tempo, não vai ver nenhum dos dois claramente, ou melhor, não vai ver nada” (BRUCE, 2009). Davi compreendeu isto, e por isso em uma de suas canções, afirmou que em Deus está o manancial da vida, e que somente na sua luz veremos a luz (Sl 36.9). Portanto, a questão não é o que se vê com os olhos, mas o que se interpreta a partir de nossa realidade interior (Mt 15.11-20).
Todas as coisas são puras para os puros, mas nada é puro para os contaminados e infiéis; antes o seu entendimento e consciência estão contaminados. Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no com as obras, sendo abomináveis, e desobedientes, e reprovados para toda a boa obra (Tt 1.15-16).
Ainda que haja coerência intelectual nos argumentos que utilizamos para dizer que conhecemos a Deus, somos incoerentes quando não andamos sobre as palavras daquele que chamamos de Senhor. Como infiéis, somos negligentes na fé e desqualificados na prática das boas obras.
A COERÊNCIA DA ADOÇÃO: UMA OBRA DO ESPÍRITO
Um dos aspectos da obra do Espírito em nosso interior, é nos transportar da condição de orfandade para nos estabelecer na posição de filhos. Este processo de adoção ocorre simultaneamente com a justificação, sendo o meio pelo qual somos inseridos na família de Deus, e assim, ter a mesma posição legal do Filho Primogênito (Hb 12.23).
É importante ressaltar que Deus é Pai desde a eternidade, e que a humanidade foi criada para ser a filiação de Deus, e por isso, existe uma relação íntima e inseparável entre o Reino de Deus e sua Paternidade (LADD, 1911). Portanto, o novo nascimento não envolve apenas nos tornarmos uma nova pessoa, mas em sermos estabelecidos na condição de filhos de Deus, com todas as prerrogativas inerentes a esta posição.
Na cultura bíblica, a primogenitura envolvia a consagração do filho mais velho à Deus (Ex 22.29), por isso, entre os israelitas, ele precisava ser remido. Ao mesmo tempo, se tornava o sucessor ou o herdeiro principal do pai, assumindo toda a responsabilidade sobre o legado do nome do pai, da herança familiar e do bem estar dos seus irmãos. Por causa desta responsabilidade, o primogênito tinha direito a porção dupla da herança (Dt 21.17; 2Cr 21.3).
Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para, outra vez, estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos, logo, herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados (Rm 8.14-17).
No contexto da filiação, precisamos compreender que ela se realiza no presente, mas em outro sentido, ainda é futura, porque não receberemos os benefícios e privilégios plenos da adoção (GRUDEM, 2007), até que Cristo retorne e tenhamos nossos corpos ressuscitados (Rm 8.23).
A COERÊNCIA DO INCOERENTE FILHO PRÓDIGO
A parábola do Filho Pródigo contém elementos importantes para analisarmos o nível de coerência em nossa vida. No conceito jurídico, prodigalidade envolve aquele que pode ser interditado, ou impedido de administrar os seus bens, por não ter discernimento e capacidade para os atos da vida civil.
O anseio do filho mais novo era a independência, o mesmo caminhado escolhido por Adão. Toda necessidade de independência gera ruptura relacional, e toda ruptura traz em si o conhecimento autônomo, uma jornada de experiência onde as sensações inebriantes manipulam a realidade de vazio existencial, escondem a falta de sentido da vida e a frustração no interior do ser solitário.
Além disso, toda ruptura relacional gera um tipo de morte. Nesta perspectiva, não foi o filho que matou o pai para acessar a herança, mas ao reivindicar uma herança que não estava preparado para administrar, trouxe morte sobre si mesmo. O autor de Provérbios nos ensina que a conquista gananciosa e antecipada de uma herança não terá um final abençoado (Pv 20.21). Com isto, o jovem perdeu seu senso de identidade e dignidade singular, adulterou sua vocação e comprometeu o seu futuro.
Nós não conseguimos compreender a dimensão do ser família, enquanto nutrirmos um pensamento autônomo e egocêntrico. O filho mais novo rompeu com os vínculos familiares, e por causa do seu coração libertino, fez uma gestão descontrolada dos recursos. Até havia certa coerência em sua escolha, pois era “seu direito” usufruir da sua herança. Sua ideia carregava sentido racional, conexão com os desejos do seu coração e consistência com sua perspectiva sobre o futuro. Mas é importante ressaltar, em primeiro lugar, que os resultados das nossas escolhas incoerentes, são coerentes com as escolhas que fazemos. Em segundo lugar, aquele que deseja ser autônomo e/ou independente, sempre terminará só, tendo como única companhia pessoas, objetos e ambientes que representam e simbolizam o real estado do seu coração.
O filho legítimo escolheu deixar a casa do pai, porque era governado pelo espírito de orfandade, que gera em nós a necessidade nociva de provarmos para nós e para os outros, que somos capazes de sustentar a vida que desejamos ter. Tal indivíduo, carrega um profundo sentimento de solidão, rejeição e ausência de pertencimento. Acredita também, que a sua vontade sempre deve prevalecer, se tornando uma vítima de sua própria estrutura de orgulho. Por ser solitário, não possui referencial sobre sua identidade, o que fomenta obscuridade sobre o seu propósito de vida, comprometendo seu senso de direção e destino. Por isso, a escolha altiva do jovem foi um ato de rebelião contra Deus, pois “pecou contra os céus e contra seu pai, e não encontrou mais dignidade em si” (Lc 15.18-19).
A parábola do filho pródigo é a parábola da humanidade, de todos os descendentes de Adão, ou seja, dos filhos da desobediência sujeitos ao juízo de Deus (Ef 5.6). A humanidade criada e revestida da beleza, esplendor e dignidade, passou a viver uma vida dissoluta, como animais que buscam sua sobrevivência e cada vez mais se afundam em seu próprio lamaçal de pecados (2Pe 2.22).
Porquanto este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado. E começaram a celebrar o seu regresso ( Lc 15.24).
Infelizmente, muitos na fase adulta são como meninos irresponsáveis. Precisam ser sustentados porque não tem competência para multiplicar recursos. Todo menino que se acha um adulto, é cheio de opinião sobre tudo, mas sua postura altiva expõe sua incoerência pessoal e irrelevância existencial.
A COERÊNCIA DO INCOERENTE FILHO MAIS VELHO
Enquanto o filho mais novo teve coragem para revelar ao pai seu desejo egocêntrico, o filho mais velho nos apresenta um outro paradoxo. Enquanto o mais novo escolheu o mesmo caminho de Adão, o mais velho nutria o mesmo sentimento de Caim.
Sua postura de rejeição do filho mais novo, “que havia gastado os bens do pai com prostitutas” (Lc 15.30) revela a amargura do seu coração. Ver o filho mais novo retornar e ser recebido com honras pelo pai ofendeu seu coração e comprometeu a partilha da herança. O sacrifício se tornou o ponto de tensão nesta parábola. Enquanto o filho mais velho reivindicou seu direito por causa de todo o sacrifício que fazia a favor do pai, o filho mais novo foi agraciado com o sacrifício que o pai proveu em favor dele.
Por isso, o irmão mais velho, que deveria zelar pelo bem estar do irmão mais novo se tornou seu acusador, pois se achava mais digno do “direito de celebrar com seus amigos” (Lc 15.29). Enquanto o pai celebrou em família o retorno do mais jovem, o mais velho desejava permanecer à parte, pois em seu íntimo, seu irmão jamais deveria ser reconduzido à posição a qual escolhera deixar.
A NECESSIDADE DE DESENVOLVERMOS UMA VIDA COERENTE
As incoerências dos irmãos são denunciadas pela coerência do pai. No caso do irmão mais velho, o pai abordou o princípio do pertencimento a partir do princípio de se permanecer na realidade do amor pactual do ambiente familiar. Por estar na junto do pai, tudo lhe pertencia (Lc 15.31).
Já no caso do irmão mais novo, o pai abordou o pertencimento a partir do princípio de acolhimento remidor e restaurador. A fidelidade do pai proveu o caminho para a restauração do filho, por isso, ele mesmo vestiu seu filho com roupas de dignidade, calçou seus pés para os caminhos que se originavam na paternidade, e restabeleceu o aspecto legal e posicional do filho, colocando em seu dedo um anel que representava legitimidade e autoridade proveniente do nome do pai.
Apesar do pai celebrar o retorno do filho mais novo, o filho mais velho não sabia como celebrar a sua relação com o pai. Enquanto o filho mais velho seguia o exemplo de responsabilidade do pai, o mais novo se preocupava em dar vazão aos seus desejos à qualquer custo. Contudo, o filho mais velho que era um exemplo de responsabilidade com os recursos da casa do pai, não conseguiu entender a dimensão do amor incondicional do pai. Enquanto o que reconheceu ser um pecador alcançou graça, o que tinha um pensamento elevado sobre si mesmo recebeu uma dura repreensão (Lc 19.8-17).
E nós, como temos nos relacionado com Deus? Quantas incoerências ainda podem existir em nossos discursos racionalmente coerentes? Quantos irmãos ainda rejeitaremos em nome das relações psicoafetivas que chamamos de pactuais? Quais são os abismos quem existe entre “as informações que temos sobre o reino” e o que de fato “conhecemos da realidade do reino”? O quanto nossas orações se revelam incoerentes diante da nossa falta de compromisso com o que oramos?
Em qual perfil nos enquadramos hoje? Daqueles que foram reinseridos na família de Deus, por se reconhecerem incapazes de viver por si mesmos, ou dos religiosos que tentam agradar a Deus pela sua postura moral e envolvimento missional, sem contudo, entenderem de fato, a realidade da paternidade divina? Se o Reino de Deus e a Paternidade divina estão intimamente ligadas e são indivisíveis, como poderemos nos mover na autoridade do reino permanecendo em um estado de orfandade funcional?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bíblia de Estudo do Discipulado. – Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2019
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Severa, Zacarias De Aguiar. Manual de Teologia Sistemática. – Curitiba, Pr: AD Santos Editora, 1999.