O que nos torna Igreja? Se a Igreja é o corpo de Cristo, ser igreja sozinho é uma possibilidade ou uma heresia pós-moderna? Congregar em torno de Cristo é o mesmo que participar de uma confraternização de amigos?
Estas perguntas, outrora simples, se tornaram controversas no cenário de isolamento social, e ainda mais inquietantes diante do avanço da pandemia no Brasil e no mundo.
É preciso reafirmar que não defendemos um discurso negacionista de irresponsabilidade social, mas quando olhamos para um espectro mais amplo, do impacto do isolamento e os desdobramentos a médio e longo prazo, surgem pontos de elevada preocupação. Neste momento atual de disfunção do “tradicional”, é preciso sobriedade para nos debruçarmos sobre os princípios elementares da fé cristã e avaliarmos se nossa prática de vida é condizente com nosso discurso cristão.
É notório que a pandemia do COVID19 escancarou as mazelas da humanidade, expondo a fragilidade da aparente fé da cristandade pós-moderna. Segundo relatório da ONU (Organizações das Nações Unidas), a pandemia gerou a pior crise sistêmica desde sua fundação em 1945, trazendo um grande choque econômico por causa da crise sanitária. No Brasil, 71% da população está em situação de endividamento financeiro. Na América Latina, em média, 80 milhões de pessoas estão em condição de extrema pobreza. No mundo, já passam de 700 milhões de pessoas nesta mesma condição. O autor da epístola aos Hebreus afirma que “mais uma vez, Deus está abalando céus e terra“, não apenas no sentido de desestabilizar, mas remover o que está desalinhado em relação ao Seu Reino Inabalável. Ele ainda nos encoraja a conservarmos em nós este Reino, pois é a partir desta realidade interior que prestamos um culto que é agradável a Deus (Hb 12, 5-28).
Se o culto fala de cultivo, e cultivo aponta o desenvolvimento de novas estruturas e práticas culturais na sociedade, que tipo de resposta temos apresentado ao mundo em nossa volta? Permanecemos no mesmo lugar de todos, ou estamos desbravando os novos cenários que Deus está descortinando em nosso tempo? Persistimos na condição do medo em nome da autopreservação, ou acolhemos os indivíduos que estão perecendo em nossa volta? Se o amor de Deus lança fora todo o medo, estamos vivendo como escravos do medo ou como proclamadores da liberdade aos aflitos de coração?
Acreditamos que Deus está nos convocando a uma profunda avaliação da nossa práxis cristã, e ao mesmo tempo, nos impulsionando a um lugar de arrependimento e redimensionamento das iniciativas pessoais para o âmbito corporativo da natureza pactual da Igreja de Cristo. Pensar a realidade da Aliança, o ambiente da Mesa e o sacramento da Ceia nos fornecem chaves importantes para os próximos anos.
A REALIDADE DA ALIANÇA
Nos dias de Noé encontramos a primeira vez em que a palavra Aliança aparece nas Escrituras: “Mas estabelecerei contigo a minha aliança; tu entrarás na arca, e contigo, teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos.” (Gn 6,18). A palavra hebraica ברית (bˆeriyth), que é traduzida por aliança, aparece mais de 285 vezes no Antigo Testamento. Esta expressão traz o sentido de um compromisso entre duas pessoas que se associam, segundo uma ordenação divina com sinais e promessas. Não envolve apenas o ato de se fazer uma aliança com alguém, mas a atitude de manter a aliança custe o que custar, empenhando a própria vida para evitar que a aliança seja violada. A raiz desta palavra ainda aponta para o ato de cortar, criar, moldar. É por isso que no AT o símbolo da Aliança era a circuncisão do prepúcio, que apontava para uma circuncisão mais profunda, a do coração (Rm 2,29)
Aliança envolve o acordo entre as duas partes de comprometer-se com seu relacionamento, sendo um compromisso que sustenta todo relacionamento bem-sucedido e inclui os princípios de integridade que garantem a preservação de um relacionamento. (ASHER INTRATER)
É por causa da relação de Aliança que o Pai e o Filho são um (Jo 10,30). Da mesma forma, mediante a mediação de Cristo (Hb 12,24), nos tornamos participantes dEle e do Espírito (Jo 17,21; Hb 3,zg14; Hb 6,24). Nesta realidade espiritual, encontramos o princípio do relacionamento de aliança, que abrange todas a relação entre homem e mulher – “Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne.” (Gn 2,24) – Cristo e sua Igreja – “Cristo é o cabeça da igreja, sendo ele mesmo o Salvador do corpo.” (Ef 5,23) – e nosso relacionamento como família de Deus – “Para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.” (Jo 17.21).
No Novo Testamento, a palavra utilizada como aliança é διαθηκη (diatheke) que, em sua raiz, traz o conceito de uma parte que estabelece um pacto com outra, envolvendo o pertencimento e acesso legal ao testamento e/ou herança. Cristo como Mediador da Nova Aliança, nos torna participantes de sua natureza e da família de Deus (Ef 2,19), bem como co-herdeiros com Ele de todas as dádivas do Pai (Rm 8,17).
O AMBIENTE PACTUAL DA MESA
A mesa tem uma simbologia muito relevante no contexto judaico-cristão. Primeiro, porque ela era um mobiliário do Tabernáculo: “E sobre a mesa colocarás os pães consagrados, para que estejam sempre diante de mim.” (Ex 25,23). Os doze pães consagrados, também chamados de Pães da Presença, deveriam permanecer continuamente sobre a mesa, representando a provisão do Eterno a todos os descendentes das tribos de Israel. Por isso, a mesa retrata a abundância proveniente da relação de Aliança de Deus com seu Povo, onde todos participam por estarem em comunhão com Deus e uns com os outros.
Paulo escrevendo aos coríntios, resgata este princípio do Pão da Presença ao nos ensinar o princípio da Mesa: “Acaso o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? Acaso o pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Há somente um pão, e nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos do mesmo pão” (1Co 10,16-17). Tanto no Antigo como no Novo Testamento, este ambiente da mesa tem um duplo significado: representa a comunhão com Deus e entre os irmãos! Da mesma forma que o Pão sobre a mesa é um só pois representa de Cristo, nós como membros do seu corpo somos integrantes deste Pão Único.
Um outro princípio norteador da mesa é que ela define o nível de relação que nos dispomos a viver. Neste lugar, o perdão é uma condição inegociável: aquele que não perdoa o seu próximo pelas ofensas sofridas (Mt 6,14), está separado dele e, portanto, como haverá comunhão com Deus na ausência de comunhão com o próximo? Assim como em nossa relação com Deus o perdão nos proporciona aceitação, na relação com o próximo o mesmo princípio se aplica. O lugar da mesa é um lugar de partilha da totalidade de quem somos e de tudo o que temos. Neste lugar, a Vida de Deus flui através de Sua provisão que se estende a todos, a partir de cada um de nós.
Nossa comunhão não pode ser baseada naquilo que a pessoa é em si, em sua espiritualidade e piedade. Determinante para nossa fraternidade é aquilo que a pessoa é a partir de Cristo. Nossa comunhão consiste unicamente no que Cristo fez por nós dois (…) Quem deseja mais do que Cristo estabeleceu entre nós não procura fraternidade cristã, busca quaisquer experiências extraordinárias de comunhão que não pode encontrar em outra parte, traz desejos confusos e impuros para dentro da fraternidade cristã (…) Numerosas vezes, toda uma comunhão de cristãos faliu porque vivia de um ideal. Fraternidade cristã não é um ideal, mas uma realidade divina (…) espiritual e não psíquica (…) não é um ideal que nós devêssemos realizar. É uma realidade criada por Deus, em Cristo, da qual podemos tomar parte. – (DIETRICH BONHOEFFER)
Portanto, a mesa é a manifestação da realidade eterna da Casa do Pai. Um lugar onde os filhos se reúnem para celebrar a comunhão proveniente da realidade espiritual da qual nos tornamos participantes em Cristo, pois Ele mesmo não se envergonha de nos chamar de irmãos perante o Pai (Hb 2,11). Ela nos releva a dinâmica de um ambiente pactual, onde a comunhão frutifica em uma mesa abundante como uma expressão da provisão generosa do Pai para com seus filhos. (Gn 49,20; Sl 133,1-3).
O SACRAMENTO DA CEIA
Os sacramentos são ordenanças divinas, sendo expressões simbólicas de uma realidade espiritual. Entre estas ordenanças encontra-se a Ceia do Senhor, instituída por Cristo e confiada a Igreja. A Ceia tem uma dupla finalidade: ser um memorial da obra salvífica e uma anunciação da sua vinda.
Porque todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes do cálice proclamais a morte do Senhor, até que ele venha. (1Co 11,26)
A Ceia foi instituída para ser celebrada em um ambiente pactual, refletindo na Mesa do Senhor. O pão que representa o corpo físico de Cristo partido em favor de nós, é partilhado em favor do outro em um ambiente pactual. Da mesma forma, o cálice é de todos e para todos. Nele se manifesta o compromisso de Cristo em ser um conosco, assim como deve ser a expressão de compromisso de vivermos em comunhão com nossos irmãos.
Jesus disse que, para entrar na nova aliança, temos todos de beber de seu sangue e comer de sua carne. Dessa forma, ele mostrou que todos nós devemos ligar a nossa vida em total unidade de aliança com ele — a nossa vida por sua vida e sua vida pela nossa vida. Uma aliança de sangue exige uma total lealdade de vida ou morte. (ASHER INTRATER, 2019)
Este ambiente pactual é que nos define como uma “ekklesia”, uma “assembleia daqueles que são chamados para fora“. Igreja não é um lugar aonde vamos, mas é a realidade pactual da qual nos tornamos participantes em Cristo. Por isso, o autor aos Hebreus nos exorta a não deixarmos de congregar como é costume de alguns (Hb 10,25). Não nos esfriamos porque deixamos de congregar, mas o ato de não congregar já é um sinal de frieza e apatia, pois a igreja é a congregação do Senhor. Para que haja uma congregação, é necessário que as pessoas se reúnam como uma assembleia.
Lembre-nos ainda, de que o cristianismo é singular por não ser de natureza individual, mas coletiva. Ele enfatiza o reunir dos santos. Todas as outras religiões advogam a piedade individual; somente o cristianismo convoca as pessoas a se reunirem, trazendo a graça especial de Deus sobre a assembleia dos crentes. (WATCHMAN NEE)
O próprio apóstolo Paulo, ao ser momentaneamente privado de estar com os irmãos de Tessalônica, afirmou que os mantinha em elevada estima em seu coração, e por isso, trabalhava incessantemente para poder vê-los novamente (1Ts 2,17). Já ao escrever aos irmãos em Corinto, o apóstolo aponta que no ambiente coletivo da congregação ocorre a edificação do corpo, na medida que cada membro funciona em favor do corpo através dos dons que lhe são concedidos pelo Espírito à Igreja. Decidir não congregar é escolher privar o outro da graça de Deus que está sobre cada um de nós, manifestado nos talentos concedidos a cada um para edificação de todos.
O Corpo funciona coordenadamente: os olhos ajudam os pés, os ouvidos, as mãos e as mãos, a boca. Esses membros atuam e sustêm uns aos outros; seu funcionamento é principalmente percebido nas reuniões. Portanto, aqueles que raramente se reúnem têm pouca chance de conhecer o que significa o funcionamento do corpo. Devido à interação de um membro com o outro, nossas orações na assembleia são perfeitamente ouvidas por Deus e assim recebemos ainda mais luz. O que percebemos individualmente não excede o que vemos na assembleia, uma vez que todos os ministérios que Deus colocou na igreja são manifestos durante as reuniões. Deus preparou tais ministérios por causa da reunião dos santos. (WATCHMAN NEE)
Mas como cumprir o mandamento de congregar em um contexto de crise sanitária? Não ir presencialmente ao culto é deixar de congregar? Primeiro é preciso destacar que nem todos que frequentam um culto estão de fato congregados, e o fato de haver um impedimento temporário também não significa que deixamos a congregação. O autor aos Hebreus afirma que devemos “procurar viver em paz com todos e em santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” e termos o “cuidado para que ninguém se abstenha da graça de Deus. Que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe e muitos sejam contaminados por meio dela.” (Hb 12,15-16). O que tem afastado muitos da congregação do Senhor em nossos dias, não são os decretos sanitários, mas a amargura de um coração ofendido, que por não estar em paz com o outro, se priva da graça de Deus e contamina o coração de muitos outros.
CONCLUSÃO
Por causa da realidade de Aliança, nós como membros de uma expressão local da Igreja de Cristo na cidade, devemos examinar a nós mesmos. Precisamos romper com as desculpas superficiais de corações amargurados. É preciso libertamos nossos irmãos dos grilhões do jugo carnal que impusemos sobre eles, e assim encontrarmos cura em nossa alma por causa da frustração pessoal. É preciso voltarmos ao fundamento da realidade espiritual da Aliança, darmos passos consistentes no estabelecimento de um ambiente pactual de paz, para que na medida que as pessoas se achegam a este pequeno aprisco, elas possam ver o testemunho vivo do sacramento da Ceia do Senhor presente na vida ordinária desta comunidade local.