Continuamos perseverando em nossa série de reflexões sobre a Edificação da Igreja. Abordamos anteriormente o aspecto do fundamento sobre o qual ela está edificada, a perspectiva da confissão de Pedro, as chaves do Reino e a conexão com Pentecostes. Hoje trataremos a respeito do período que engloba a Ascensão de Cristo e o derramar do Espírito na Festa de Pentecostes.
A GRANDE COMISSÃO E A ASCENSÃO DE CRISTO
Durante 40 dias após a sua ressurreição Cristo permaneceu com os discípulos. Lucas narra que “Yeshua lhes disse: ‘Por isso falei enquanto ainda estava com vocês: Tudo o que estava escrito a meu respeito na Torah de Moisés, nos Profetas e nos Salmos tinha de ser cumprido. Então lhes abriu o entendimento para que pudessem entender as Escrituras” (Lc 24.45-46). Além disso, afirmou que eles eram testemunhas de todos os fatos concernentes a obra de salvação por meio da sua morte e ressurreição.
Por isso, receberam a missão de proclamarem a mensagem do Evangelho entre os povos e formarem discípulos imergidos na realidade do Deus Trino, para obedecerem a tudo o que lhes foi ordenado. Por receberem autoridade daquele que tem toda autoridade nos céus e na terra, teriam através da cooperação de Cristo, a evidência dos sinais que autenticariam a veracidade da mensagem que carregavam.
A Ascensão de Cristo é o momento da sua glorificação e a proclamação do seu triunfo sobre todas as coisas. Conforme narra Pedro “Ele subiu ao céu e está a direita de Deus, com anjos, autoridades e poderes que lhe estão sujeitos” (1Pe 3.22). Segundo Severa, este é o momento da coroação de Cristo e por causa disto, se “estabelece condições sob as quais a Igreja é chamada para servir: sob um Senhor que se acha agora exaltado como cabeça na terra e no céus (Ef 1.20-23).” Neste lugar, Cristo permanece aguardando “até que Deus coloque seus inimigos como um estrado para os seus pés ” (Hb 1.13), ou seja, até o pleno cumprimento por parte da Igreja, do mandato evangelístico outorgado por Cristo.
É importante ressaltar que o comissionamento de Jesus aos discípulos envolve três grandes mandatos. O primeiro é o Grande Mandamento, que é a Lei do Amor, ou seja, a prática de obras de amor e serviço na nossa vida cotidiana (HORTON, 2014). O segundo envolve o Mandato Evangelístico, que nada mais é do que a proclamação do Evangelho e o processo de formação de discípulos fiéis a Cristo em todas as nações. O terceiro envolve o Mandato Cultural, que é o governo da criação pela humanidade restaurada em sua relação de amor com Deus e sujeição ao senhorio de Cristo.
A ESPERA PERSEVERANTE ATÉ A FESTA DE SHAVUOT
Por ocasião da ascensão, os discípulos permaneceram em Jerusalém, reunidos no andar superior de uma casa “se dedicando com a mesma disposição à oração” (At 1.14). Duas expressões são chaves para compreendermos esta dinâmica entre eles.
A primeira é προσκαρτερεω (proskartereo) que significa ser fiel a alguém, estar constantemente atento, continuar todo tempo em um mesmo lugar, perseverar e não desfalecer, estar em constante prontidão para alguém. Isto nos mostra, que a espera dos discípulos não era passiva, displicente ou inerte. Pelo contrário, era uma espera ativa em correspondência ao ensino que ouviram. Eles não aguardavam uma mudança de cenário, mas estavam ansiando por um encontro anunciado.
A segunda expressão é ομοθυμαδον (homothumadon) traz a ideia de um ambiente onde todos estavam reunidos com uma mesma mente, de comum acordo, com uma mesma paixão. Enquanto proskartereo nos aponta sobre perseverar no que foi dito, ainda que nada aparentemente estivesse acontecendo, homothumadon nos aponta para o tipo de ambiente que a própria Palavra estava gerando entre eles.
Neste ambiente houve o entendimento por parte de Pedro de que algo precisava ser ordenado. Isto envolvia o processo de restauração do fundamento da representatividade corporativa, a qual ocorre com a escolha de Matias para substituir Judas Iscariotes. O critério era que o escolhido tivesse perseverado com eles, desde o início do ministério de Cristo até a consumação da sua obra na ascensão.
A INAUGURAÇÃO DA IGREJA: O PENTECOSTES
A festa de Shavuot, Pentecostes em grego, foi designada pelo próprio Deus como uma festa de peregrinação obrigatória para os hebreus. No Antigo Testamento é também chamada de Festa das Sega/Colheita (Ex 23.16), Festa das Semanas (Ex 34.22) e Festa das Primícias (Nm 28.26).
Deveria sempre ser celebrada 7 semanas ou 50 dias após a Páscoa, no período da colheita dos primeiros frutos. Foi a primeira festa celebrada no deserto, ao redor do Sinai, durante a outorga da Torah. Conforme Walker afirma o “Sinai representa o casamento (…) e casamento é aliança“, por isso, as tábuas da lei se tornaram o instrumento que testificava e continha os termos da união pactual entre Deus e o descendentes de Abraão (Ex 19). Esta é uma chave importante para a compreensão da relação entre a celebração da festa no Antigo e Novo Testamento. Assim como no evento do Sinai, em Atos também ocorreu um encontro que envolvia o estabelecimento de uma aliança de casamento.
Porquanto vos tirarei dentre as nações e vos reunirei de todas as terras e os conduzirei de volta para a vossa própria terra. Então aspergirei água fresca e límpida, e ficareis purificados; Eu mesmo vos purificarei de todas as vossas impurezas e de todos os vossos ídolos. E vos darei um novo coração e derramarei um espírito novo dentro de cada um de vós; arrancarei de vós o coração de pedra e vos abençoarei com um coração de carne. Eis que depositarei o meu Espírito no interior de cada pessoa e vos capacitarei para agires de acordo com as minhas leis e princípios; e assim obedecereis fielmente aos meus mandamentos! – Ex 36.24-27
Milhares de judeus e israelitas que nasceram em diversas regiões mundo por causa da diáspora, regressaram a Jerusalém para estabelecer residência, enquanto outros, estavam residindo temporariamente devido ao período da Páscoa e de Pentecostes. Segundo Fabris, estes judeus e israelitas “adotaram a língua e em parte acolheram a influência da cultura helenística“. Um povo separado para promover a cultura do Reino de Deus entre as nações havia absorvido a cultura dos povos onde estavam espalhados.
E em Jerusalém estavam habitando judeus, varões religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu. E, correndo aquela voz, ajuntou-se uma multidão e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua. E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros: Pois quê! Não são galileus todos esses homens que estão falando? Como pois os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos? Partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, e Judeia, e Capadócia, e Ponto, e Ásia, e Frígia, e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos (tanto judeus como prosélitos), e cretenses, e árabes, todos os temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto. – At 2.5-13
Ao cumprir-se o dia de Pentecostes os discípulos foram encontrados pelas profecias de Ezequiel (Ez 36), Joel (Jl 2) e Cristo (Jo 14). É importante destacarmos que um som irrompeu e um vento preencheu a casa onde estavam assentados. Em seguida, foram vistas línguas como de fogo, que concedeu aos discípulos poder para comunicar. Estes símbolos teofânicos, que indicam a força e o poder de Deus, nos dão uma dimensão do dom divino que lhes foi compartilhado (FABRIS, 1984).
Com isto os judeus oriundos de diversas nações, ouviram a mesma mensagem em suas línguas nativas, uma antitese de Babel (Gn 11). A atuação do Espírito era o fator unitivo da comunicação em uma variedade de identidades culturais. Portanto, falar em línguas é ser “ouvido, é a possibilidade de superar o gueto, o racismo e a divisão cultural” (FABRIS, 1984).
Portanto, em Pentecostes, as barreiras culturais foram removidas pelo Evangelho. Se anteriormente, os discípulos acreditavam que o Reino de Deus envolvia a restauração de um governo político de Israel no cenário global, agora estavam diante da realidade de que o Reino de Deus não envolvia um contexto nacionalista imperalista, mas um povo multiétnico unido pela mesma experiência interior.
A obra realizada pelo Espírito no Pentecostes criou uma unidade na pluralidade, e uma pluralidade na unidade: um só Evangelho, formando um só corpo, e contudo, cada pessoa ouviu este evangelho na sua própria língua. Essa unidade na pluralidade é evidente na criação, principalmente na criação da humanidade que porta a imagem de Deus: homem e mulher. Todavia depois da queda, a diferença tornou-se oposição, suspeita e violência. Não obstante, o Espírito desceu no Pentecostes não para espalhar as orgulhosas nações e dividir suas línguas, mas para juntá-las numa nova humanidade, em toda as sua diversidade, em torno do evangelho. – (HORTON, 2014)
Por causa disto, a unidade da Igreja e seu alcance universal, por meio de um só evangelho em diferentes contextos culturais, é o grande fator de abrangência da dinâmica da vida da Igreja que nos é descortinado a partir de Atos 2. Cristo em sua encarnação não assumiu a natureza de um homem em sua individualidade ou de uma raça particular, mas a natureza da humanidade. Por isso, carrega a totalidade de duas naturezas em uma única pessoa, e desta forma, “cria uma comunidade multigeracional, multiétnica e multinacional de pecadores perdoados e renovados, cuja união com Cristo e cuja comunhão em sua Palavra e em seus sacramentos faz deles a família mais estranha e mais maravilhosa do mundo (…) A Igreja que Jesus está edificando é um meio da fidelidade de Deus “de geração em geração” e provém de toda tribo, povo, língua e nação” (HORTON, 2014)
Em nosso próximo texto estaremos compartilhando sobre a dinâmica desta Igreja que nasceu em Atos, para que possamos compreender como comunicar a verdade do Evangelho no contexto cultural onde estamos inseridos.
CRISTO É O CENTRO DO EVANGELHO
Atualmente nos deparamos com um evangelho diluído, adaptado a vida do homem pós-moderno, no que tange a promoção do seu bem estar, por isso, a mensagem tende a ser menos confrontadora possível. Grande parte das pessoas vive mais uma busca por uma salvação psicológica, do que de fato, viver a partir da relação pactual com Cristo.
A mensagem de Pedro em Pentecostes foi confrontadora, pois estava firmada integralmente na pessoa de Cristo e sua obra no decorrer da história da humanidade. Não era uma mensagem desprovida de significado histórico e profético, e muito menos descontextualizada da cultura dos ouvintes daquela mensagem. Entretanto, não era uma mensagem condicionada a quem estava ouvindo, mas a partir do Espírito que os inspirava.
Quando ouviram isso, ficaram com o coração compungido e disseram a Pedro e aos outros apóstolos: “Irmãos, o que devemos fazer?”
A palavra traduzida por compungir vem do grego κατανυσσω (katanusso) que significa picar, furar, metaforicamente também significa atormentar a mente profundamente, agitar veementemente, comover, despertar emoção de tristeza, aflição.
A mensagem deixou os ouvintes perplexos, porque se viram indesculpáveis diante de Cristo. Enquanto indagavam sobre como deveriam responder a mensagem, receberam uma diretiva prática baseada em três âmbitos que nos apontam o processo para nos tornamos participantes da família de Deus e membros do corpo de Cristo. (At 2.38-39).
O Arrependimento, que vem da palavra metanoia, que está associada a raiz μεταμορφοω (metamorphoo), significa mudar de forma, transformar, transfigurar. O arrependimento não é apenas uma confissão momentânea, pois sem ele não há salvação, sendo uma exigência para todos os homens em todos os lugares (SEVERA, 1999). O arrependimento envolve uma nova vida com novos frutos (Lc 3.-8-10; Jo 3; Gl 6.11-18; 2Co 5.17), porque envolve um reposicionamento em nossa relação com Deus. Promove convicção do pecado e suas consequências, bem como, o desejo e vontade de abandoná-lo, para seguirmos a Cristo.
Não é o arrependimento que abre espaço para a operação da graça de Deus em nós, mas é a graça de Deus que é o caminho que nos conduz a experiência libertadora e transformadora do arrependimento. Porém, vale a pena destacar que o arrependimento também não envolve um momento, mas é parte da nova natureza em Cristo. Na obra de salvação envolve a resolução do pecado como um estado da natureza caída do homem. Já no processo contínuo de santificação, envolve o abandono dos pecados específicos que cometemos em nossa jornada de vida.
O Batismo é um sacramento cristão, ou seja, um ato com um caráter sagrado, uma confissão pública da fé e o fundamento da relação de comunhão entre os irmãos. Não é o batismo que nos torna salvos, mas por causa da salvação, somos imergidos na realidade da comunhão com Cristo e com sua Igreja. Assim como o arrependimento não envolve apenas um ato momentâneo, o batismo também envolve estarmos permanentemente imergidos na realidade da vida de Cristo e sua obra (1Pe 3.21).
O Dom do Espírito, derramado sobre os discípulos no cenáculo é extensível a todos os seguidores de Cristo, porque assim como aconteceu na criação, é o Espírito que atua no ordenamento e no desenvolvimento da vida da Igreja na história. Por meio do Espírito é que a Verdade se expressa, pois é por meio dEle que o testemunho do Filho é dado. Além disso, é através dEle que podemos realizar as obras de Cristo e servirmos a Deus de maneira agradável (Gl 5.25).
CRISTO É O CENTRO DA IGREJA
A Igreja não existe por causa do homem, mas por causa de Cristo. Como uma comunidade de povos, não possui limitação geográfica, temporal ou cultural. Não está sujeita as estruturas sociais, políticas ou econômicas, mas assim como todas as estruturas sociais, está sujeita diretamente a Cristo. É mais do que uma organização civil, pois é a Noiva de Cristo. Não se move por meio de estruturas hierárquicas, mas através de relações pactuais e serviço em amor.
A relação da Igreja com Cristo não é baseada em poder, mas em amor sacrificial. Por isso, a dinâmica da Igreja não é centrada em si mesma, em suas atividade, programações ou relações com a cidade, mas em sua perseverante e íntima relação com Cristo.
A Doutrina dos Apóstolos: envolve as Escrituras como a base de legislação a respeito das relações e práticas de vida. Envolve se dedicar a aplicação prática do ensino.
A comunhão: κοινωνια (koinonia) envolve a participação recíproca na relação de intimidade e companheirismo. Envolve a partilha do ordinário da vida.
O Partir do Pão: O sacramento da Ceia como um memorial, não era a mesa da partilha das refeições ordinárias, mas o solene memorial da pessoa e obra de Cristo.
As Orações: um ambiente coletivo de súplicas, orações, intercessões e ações de graças, visando uma plena correspondência da Igreja ao desenvolvimento do propósito de Deus na história da humanidade.
A MISSÃO DE CRISTO É A MISSÃO DA IGREJA
A partir da dinâmica da vida da Igreja, os discípulos começaram a promover alterações na cidade. Em meio a uma crise social, política e econômica em Jerusalém, a expressão da Igreja na cidade resgatou princípios e fundamentos que norteiam a Jerusalém Celestial. A administração de recursos das famílias deixou de ser privada e individual, para se tornar de corresponsabilidade coletiva, um protótipo do mandato cultural na realidade urbana. Assim como no ano do Jubileu havia um reordenamento da sociedade hebraica, em Atos a Igreja começou a promover isto a partir da vida do Espírito.
(…) a maior mudança no papel da cidade dentro da história da redenção vem com o estabelecimento de Jerusalém. Ao contrário de Babel, edificada como o intuito de “fazer para nós um nome”(Gn 11.4), Jerusalém se torna a cidade que é a morada do Nome de Deus (1Rs 14.21) (…) sendo indicada para ser uma cultura urbana de testemunho às nações, bem como um símbolo da futura cidade de Deus (2Sm 7.8-16) – (KELLER, 2104)
A partir da dinâmica da vida da Igreja, os discípulos começaram a promover alterações na cidade. Em meio a uma crise social, política e econômica em Jerusalém, a expressão da Igreja na cidade resgatou princípios e fundamentos que norteiam a Jerusalém Celestial. A administração de recursos das famílias deixou de ser privada e individual, para se tornar de corresponsabilidade coletiva, um protótipo do mandato cultural na realidade urbana. Assim como no ano do Jubileu havia um reordenamento da sociedade hebraica, em Atos a Igreja começou a promover isto a partir da vida do Espírito.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Bíblia de Estudo do Discipulado. – Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2019
Bíblia Judaica Completa. – São Paulo, SP: Editora Vida, 2010.
Brinca Anderson, Mark Beliles e Stephen McDowell. Sentinelas nas Muralhas. – Curitiba, PR: Instituto e Publicações Transforma, 2014
Fabris, Rinaldo. Atos dos Apóstolos. 1a Ed. – São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1984
Bruce. FF. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. – São Paulo, SP: Editora Vida, 2009
Horton, Michael. A Grande Comissão. – São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2014
Ladd, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. Ed.rev. – São Paulo, SP: Hagnos, 2003.
Lecionário, Ano B 2020/2021. – Uberlândia, MG; Lecionário.com, 2020.
Severa, Zacarias De Aguiar. Manual de Teologia Sistemática. – Curitiba, Pr: AD Santos Editora, 1999.
Walker, Harold. O Sentido Profético das Festas de Israel. – Campinas, SP: Worship Publicações, 2003.